Uma faísca um pingo uma semente um grão uma lágrima um átomo um átimo um piscar de olhos uma célula um ácido uma sílaba um transistor um chip uma estrela um cristal. Um objeto concentrado não é um objeto qualquer. Quando olhamos ouvimos pegamos cheiramos provamos é como se nunca houvéssemos olhado ouvido pegado cheirado provado daquela forma e quando olhamos ouvimos pegamos cheiramos provamos de novo é como se nunca houvéssemos olhado ouvido pegado cheirado provado daquela forma outra vez, e assim por diante, sempre a questionar nossa percepção das coisas, revelando muitas vezes o que já estava na cara, abrindo frestas de infinito na realidade cotidiana, com aquela lente microscópica ou telescópica no lugar dos olhos, ou com zooms repentinos de um a outro campo (“entre uma estrela / e um vagalume / o sol se põe”) ou tempo (“era rio / agora avenida / rio da vida”).
Apesar de estar usando aqui metáforas visuais, importa frisar o fato desses haikais estarem caracteristicamente marcados pela sinestesia, animando-nos muitas vezes os laços e atritos entre os sentidos (“noite no Sena / o cheiro de açucena / é nosso lume” ; “vento seco / entre os bambus / barulho d’água”).
É assim que Alice Ruiz S vem nos proporcionando lampejos de intensidade concentrada, de uma forma muito peculiar, isto é, com muita naturalidade, isto é, sem forçar a barra, isto é, pisando em terreno que ela conhece como conhece, como se diz, a palma de sua mão, e essa quiromancia geográfica da sensibilidade foi desvendando e carregando de sentidos as linhas e rastros, com tal profundidade, que a fatura desses mínimos denominadores comuns (estrelágrimas, planegotas, sementélites) passou a se dar com cada vez mais intimidade formal.
Como alguém que cuida há anos do seu jardim dos fundos, podando limpando semeando regando um espaço que se vai dominando sem domar, e de cujo contato diário horário minutário segundário brota uma sabedoria acerca de cada um daqueles caules, ramos, folhas e outras exuberâncias da cor mais verde que existe. Desde “nada na barriga / navalha na liga / valha” (primeiro haikai de Alice que li, e que me impressionou de cara pelo poder de síntese e interação sonora-semântica), Alice vêm regando e podando (quem não sabe que um objeto concentrado é fruto tanto de adição quanto de subtração?) essas surpresas e o que transparece após esses anos de cultivo é a tranquilidade de quem está “em casa” com uma espécie particular de expressão formal — extremamente difícil e cheia de armadilhas, há que se dizer, uma delas a própria aparência de facilidade que os haikais, por sua necessária simplicidade, costumam denotar.
Alice soube cavar uma maneira pessoal de se relacionar com essas formas mínimas, sem perder o gosto pela brincadeira zen, mas sem também vulgarizá-la com exotismo ou fascínio hipertrofiado — daí seu desafio quase provocativo de nomear o conjunto de “desorientais”.
Que mais teria eu a dizer de um livro de haikais com esse título? Que acrescentar a esses poemas que, por si mesmos, falam tanto com tão pouco? Meios imóveis de locomoção do espaço / tempo (“até onde a vista alcança / tudo pertinho / a quilômetros de distância”). Instantâneos que assustam com serenidade (“fim de tarde / depois do trovão / o silêncio é maior”). Multiplicadores de sentidos (“por você / eu esperava / por mim não”). Ideogramas recortados na realidade (“varal vazio / um só fio / lua ao meio”).
Deshorizontes.
Arnaldo Antunes
Alice Ruiz Scherone é uma poeta, haicaista, letrista e tradutora brasileira. Possui mais de 20 livros publicados, com poemas traduzidos e publicados em vários países. |
ISBN | 9788573210392 |
Autor(a) | S, Alice Ruiz (Autor) |
Editora | Iluminuras |
Idioma | Português |
Edição | 1 |
Ano de edição | 2000 |
Páginas | 128 |
Acabamento | Brochura |
Dimensões | 19,00 X 13,00 |
Distribuidora de livros e materiais para o ensino de idiomas como inglês, francês, alemão, italiano, espanhol, coreano, japonês, mandarim, hebráico entre outro idiomas do mundo, materiais didáticos, acadêmicos, literatura nacional e internacional entre outros.
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